Eloi de Souza Garcia
CADEIRA #42
N/A
Patrono: MÁRIO BRANDÃO
Por Benedito Eduardo Adami Ribeiro
“É inútil lamentar o vaso quebrado quando todas as forças do universo se reuniram para fazê-lo cair de nossas mãos.”
Dr. Mário Brandão nasceu em Santa Rita do Sapucaí, no dia 15 de outubro de 1903, filho do português José Soares Brandão e Dona Ordália Dias Galvão Brandão.
Formou-se em medicina pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, na Praia Vermelha, como clínico geral, em 1927.
Eu o conheci superficialmente, mas convivo muito com sua família e sou amigo de todos.
Indo à casa de Dona Filha, sua esposa, para colher dados sobre sua vida, fiquei impressionado com as situações a que, como médico, se submeteu.
As pessoas que indaguei sobre sua vida falaram do Dr. Mário com muito carinho. Um verdadeiro sacerdote na profissão, o médico de família – na extensão da palavra – que tanto ouvimos falar e que hoje já não existe, devido às superespecialidades da medicina atual.
Quando começou a clinicar, seu ganha-pão mais eram os presentes dados como reconhecimento pelo atendimento, que vinham na forma de galinha, leitoa, frutas e verdura. Dinheiro mesmo… muito pouco.
Tanto isso é verdade que não conseguiu fortuna com a profissão.
Mesmo assim, conseguiu dar estudo a todos os seu filhos.
Iniciou sua carreira de médico na Santa Casa da Fazenda Araújo, em Marília, SP.
Contaram-me que, em se envolvendo politicamente naquela cidade, e sendo contrário ao coronel mandante no local, foi perseguido até se transferir para Natércia.
Casando com Dona Maria Aparecida da Silva, conhecida carinhosamente como Dona Filha, retornou a Santa Rita do Sapucaí em 1936, onde iniciou seus trabalhos na Santa Casa de Misericórdia.
Onde havia um doente necessitado, mesmo nos lugares mais longínquos, lá estava o Dr. Mário Brandão. Andou por todas as estradas rurais do município, que eram horríveis.
Faleceu de infarto agudo do miocárdio em 21 de Março de 1970.
O RECONHECIMENTO
Era mês de dezembro e chovia torrencialmente.
Havia um chamado, para fazer um parto na Serra da Manoela. Para lá, seguiram Dona Filha, Filomena Vilela (enfermeira do hospital) e o Dr. Mário. Noite bastante escura, mato denso cobrindo a lateral da estrada, chegaram à casa da parturiente, que não possuía luz elétrica.
Conseguiram fazer o parto natural à luz de lamparina. Mãe e filho passavam bem.
Voltaram para Santa Rita com mais essa missão cumprida.
Passados 22 anos, chega um rapaz à sua casa. Dona Filha o atende e pergunta se era algum caso de doença e de urgência, pois o doutor não se encontrava naquele momento… Pediu-lhe que aguardasse sua chegada, o que foi aceito prontamente pelo rapaz.
Algum tempo se passou e, ao avistar o médico chegando, ele se apresenta e diz que havia ido até lá para fazer um acerto.
Dr. Mário ficou um pouco surpreso: um acerto? Do que se tratava?
– “Vim à sua casa para acertar o valor financeiro do parto feito há 22 anos”.
Era ele quem havia nascido naquela casinha, iluminada à luz de lamparina, na Serra da Manoela.
Após 22 anos, se lembrou de fazer o acerto, e veio de Aparecida do Norte exclusivamente para isso…
CIRURGIA NA ROÇA
O doutor possuía muitos clientes na zona rural e quando chegava à sua fazenda, lá para os lados da Serra da Manoela, apareciam muitos clientes para consultas. Esse fato se deu logo após a Segunda Guerra.
Estava à noite na fazenda, quando chegou um carro de boi com um menino aparentando 12 anos. Era trazido pelo compadre do médico.
Sentindo fortes dores do lado direito da barriga (fóssa ilíaca direita), apresentava febre, pálido como uma palha, desidratado, estado geral bastante acometido. Examinando o pequeno cliente, firmou diagnóstico: “Apendicite”.
Não daria para levá-lo à cidade, porque a estrada estava em péssimas condições, era noite e o estado geral do menino não suportaria perda de tempo.
Pediu que o colocassem sobre a mesa da sala de jantar e, à Dona Filha, que fervesse o material cirúrgico, trazido sempre na bolsa de urgência.
Com a máscara de basofórmio, iniciou a anestesia.
Precisou usar linha de carretel, que foi esterilizada junto ao material cirúrgico.
E ali mesmo fez a intervenção cirúrgica que durou mais ou menos três horas.
Graças a Deus, correu tudo bem.
Depois de alguns dias o garotinho estava recuperado… Outro sucesso na vida deste clínico…
A ENCHENTE
Mês de janeiro, tempo das goiabas d’água.
O rio transbordava inundando parte da cidade. A rua do queima se igualava ao nível do Rio Sapucaí.
À noite, batem à porta… Um chamado para atender a domicílio.
O senhor Colchete havia tido um derrame… e morava no final da rua do Queima.
Dr. Mário estava apreensivo. Como chegar à casa do cliente? Mas não negou o atendimento.
Dito da Cutuba (célebre personagem em Santa Rita do Sapucaí, que nadava como um peixe e conhecia o Rio Sapucaí como ninguém) o esperava no início da rua.
Disse-lhe:
– Dr. Mário fique tranqüilo que chegaremos bem, a não ser se batermos na pedra do Colchete.
Dr. Mário empalideceu por alguns segundos.
Entrou na canoa e foi ao serviço.
Prestou o atendimento… Tudo bem, conforme esperado.
Quem não dormiu à noite foi a Dona Filha que, preocupada, andava de um lado para o outro, imaginando o que se passava com o marido.
Situações na vida do clínico generalista…
DISTRAÇÃO
Dr. Mário era uma pessoa muito distraída. Certo dia saiu de casa em seu jipe com cabine de lona.
Por onde passava, algumas pessoas começavam a rir, outras faziam sinal com as mãos para ele parar. Não entendendo a situação continuava na direção de seu jipe.
Chegando ao destino, a casa do cliente, uma menina se pôs a rir à sua frente e ele bravo, indagou :
– O que foi menina?
E ela, com o dedo indicador, apontou a capota de lona.
Em cima estava uma gata que havia parido três gatinhos naquela noite.
Foi só risos…
CASO NA FAMÍLIA
Mitze, a filha mais velha do Dr. Mário, quando pequena montou uma pequena farmácia no fundo do quintal, onde fazia suas alquimías.
Certo dia, fez um preparado com folhas de pêssego, que deixou no quintal.
Iniciava-se aí um pesadelo para a família Brandão. Seu irmão caçula, Hypérides, com 3 anos, ingeriu todo o frasquinho contendo a substância tóxica.
Apresentando náuseas e vômitos sucessivos, iniciou com um quadro grave de desidratação e logo entrou em coma profundo.
Dona Filha lhe perguntava o que havia ingerido e, já torporoso, não conseguia explicar.
O desespero de mãe entrava em cena.
Quando Mitze chegou da escola e deu pela falta do preparado, perguntou quem havia mexido na farmacinha. Foi aí que Hypérides disse haver tomado o remédio preparado pela irmã…
Ele permaneceu em coma por vários dias e Dr. Mário o tempo todo ao lado de seu leito.
Dona Filha, esperançosa, rezava. O menino lutava contra a morte que se aproximava a cada minuto. O quadro se agravava.
Aplicavam-lhe soro sucessivamente na tentativa de controlar a sua desidratação. Usavam todos os conhecimentos da medicina, mas sabiam que muito poucos poderiam fazer.
Chegando para uma visita, um colega do Dr. Mário comentou ser um caso perdido. Não devia mais aplicar-lhe soro, pois seu corpinho já estava todo marcado por bolsas do remédio. (O soro era aplicado subcutâneo e absorvido lentamente pela pele.)
Dr. Mário precisou sair com urgência… um paciente em estado grave.
Dona Filha, exausta por estar noites e noites sem dormir, adormeceu semi-sentada no leito do pequeno moribundo… Dormiu profundamente.
Acordou assustada com Hyperides dizendo:
– Água, água… quero água.
Saía de um coma profundo.
Dona Filha levantou-se rapidamente. Voltaram as esperanças de mãe.
Nisso chega Dr. Mário e providencia o desejo do pequenino. Já havia água preparada, fervida e filtrada. Tomou-a com ansiedade. Permaneceu com diarréia por alguns dias.
Quando voltou o colega para nova visita, até mesmo porque fora chamado (prometeu não voltar, por não suportar aquele quadro apresentado pela família) comentou:
– Era esse o cadáver?
De fato estava magrinho e bastante debilitado.
Alguns meses e veio a recuperação.
Hoje é arquiteto.
SITUAÇÕES DE CLÍNICO GERAL
Dona Filha relatou -me um fato muito interessante.
Dr. Mário foi chamado para atender no Bom Retiro, Serra dos Papudos (possuía esse nome porque a água no local era insalubre e não havia iodo nos alimentos, principalmente no sal de cozinha. Com isso, naquele local os habitantes desenvolviam com facilidade o bócio endêmico, vulgarmente chamado “papo de tireóide”).
Seguiu para lá juntamente com o Sr. Astolfo, um velhinho simpático morador na rua da Pedra e que guiava carro de boi.
No alto da serra foram atacados por um casal de onças pintadas, muito comum naquelas bandas.
O susto foi imenso. Não fosse a destreza do acompanhante, teriam sido mortos.
A capa que usava ficou em trapos, mas felizmente chegaram a tempo para o chamado.
FRATURAS MÚLTIPLAS
Mais um chamado do meio rural. Era Dona Joaquininha, uma velha cliente.
Havia caído na cozinha e estava mal.
Chegou para atendê-la.
Após exames, constatou fraturas de clavícula e úmero.
Imobilizou a velhinha com uma tala, colocando-a em cima de um cavalo, e vieram para Santa Rita do Sapucaí.
A serra era íngreme e a viagem não poderia ser rápida, porque a cliente gemia de dor com os movimentos.
Dr. Mário veio segurando a cliente em cima do cavalo, por mais de quatro horas.
Isso mostra o sacrifício a que se expunham esses profissionais.
A dificuldade no atendimento, recursos escassos, estradas ruins, quase intransitáveis…
Era o clínico geral, ali, lutando por mais um cliente…
O JEITO DE SER
Dr. Mário Brandão tinha uma peculiaridade interessante: Só andava de terno e gravata. Ao se levantar, colocava o seu terno, sem nunca esquecer a gravata.
Quando foi presenteado por seu filho Ibsen com uma camisa “BanTan” de manga curta, ficou sem jeito de usá-la e, após muita insistência, colocou-a exclamando:
– Parece que estou pelado.
Tinha o maior tempo possível na consulta.
Contaram-me que, ao atender um paciente, às vezes ficava horas e horas. Chegava a ficar a noite toda na casa do cliente, aguardando a melhora.
Dona Cidinha, filha do nosso saudoso Dr. Arlete, comentou que o Dr. Mário, em uma das vezes que foi atender um de seus filhos, de madrugada, notou seu cansaço e mandou-a dormir.
Ele ficaria ao lado da criança. Puxou um livro, iniciou a sua leitura e lá permaneceu.
Ajudava muita gente.
Um dia, Dona Filha, após vê-lo atender vários clientes em seu consultório perguntou-lhe:
– Hoje você ganhou bem?
E, como resposta:
– Ganhei muitos presentes… O que recebi em dinheiro precisei dar a um dos meus pacientes para comprar remédios.
Lia muito, vasta cultura, possuía uma excelente biblioteca em casa.
Escreveu alguns contos que não foram publicados.
Participou ativamente na criação do Hospital Antonio Moreira da Costa, onde foi provedor por muito tempo da fundação da Rádio Difusora Santa-ritense (hoje do meu querido amigo Rui Brandão, onde fui locutor). Contribuiu para a melhoria da Sociedade de Assistência Aos Pobres.
Gostava de contar, quando interrogado sobre o motivo de colocar nos filhos nomes incomuns, que ao solicitar um documento em uma repartição pública no Rio de Janeiro, ouviu do funcionário:
– O senhor é o quinto Mário Brandão que me aparece hoje.
Contaram-me que Dr. Mário possuía uma “baratinha”, um carro incrementado, uma potência… Subia até em coqueiros. Só não aguentava algumas estradas do município. Aí, só cavalo para dar conta do recado.
O clínico geral – como o Dr. Mário – sabia ter de enfrentar qualquer situação e a qualquer momento.
Perguntei a Dona Filha o que se fazia quando aparecia um caso muito grave.
Foi bastante lógica a sua resposta:
– As pessoas de posses iam para São Paulo, Poços de Caldas ou outra cidade com maiores recursos. Àqueles sem condição não restava alternativa a não ser ficar, ter fé e acreditar no clínico… Não eram santos, mas faziam verdadeiros milagres.
Ao final da década de 1960 iniciou com quadro de angina de peito.
A família insistia para que fizesse o tratamento em São Paulo, onde o recurso era maior.
Dizia em tom de brincadeira:
– Só vou tratar do meu coração depois de fazer uma viagem para a Europa.
Teve uma crise mais forte quando se encontrava no Banco do Brasil em Itajubá.
Acompanhava-o seu filho Ibsen.
Foram a uma farmácia, onde sugeriu ao farmacêutico que lhe desse uma dolantina para a dor, o que lhe foi negado, sob alegação de que a injeção somente poderia ser aplicada com receita médica.
Argumentando ser ele médico, foi atendido, voltando para Santa Rita.
Anos depois, volta a Itajubá, para arrumar sua aposentadoria, no antigo INPS [Instituto Nacional de Previdência Social] – muita burocracia, muitos documentos, muitos argumentos, muitos… muitos…
Novamente passa mal e é atendido em caráter de urgência na Santa Casa daquela cidade.
Volta para Santa Rita, consegue sua aposentadoria e, dias depois, sofre um infarto agudo, fatal.
Não conseguiu desfrutar da aposentadoria tão esperada…
Biografia do Livro (via internet):
O CLÍNICO GERAL
Êta Profissão Dura
de
Benedito Eduardo Adami Ribeiro
Nascimento: 18/07/1955, Santa Rita do Sapucaí
Profissional na área de saúde.
Fotos cedidas por
Hypérides Brandão
Cybele Brandão Pinto
Diagramação: Acadêmico O. C. Kielblock – 2012.
N/A.